Quero ser uma mulher de Almodóvar

Por Sabrina Duran*

Elas têm as mãos robustas com veias à mostra, pernas rijas, músculos fartos no antebraço e uma boca que sussurra qualquer coisa de lamento e esperança. Cortam pessoas ao meio com o olhar de dois gumes. Elas dão à luz em ônibus, cozinham sozinhas para mais de 30 pessoas e enterram maridos mortos que, antes, as enterraram vivas. As que foram estupradas carregam pela vida o fruto da violência e são capazes de amá-lo como se ele tivesse sua origem numa cama sem mácula. As mulheres de Almodóvar, de tão fortes, apartam briga de leões, e de tão intensas, fazem poesia com o cotidiano. Estão sempre em carne viva.

Conheci as personagens do diretor espanhol Pedro Almodóvar aqui em Londres, durante uma sessão especial de cinema com três de seus filmes - "Carne Trêmula", "Volver" e "Má Educação". Passei oito horas sorvendo a riqueza psicológica das figuras femininas geradas por ele. Quando cria, Almodóvar não é óbvio, tal como as mulheres, na vida real, não são.

Acabo de assistir à "Fale com ela" e agora tenho certeza de que a admiração que passei a nutrir pelo diretor desde aqueles três primeiros filmes tem mais a ver com um desejo: quero ser uma mulher de Almodóvar.

Se fosse uma mulher de Almodóvar acordaria cedo para dar de comer às crianças; elas comeriam com fúria, se fartariam, virariam adultas, me esqueceriam e eu, sem declinar da tarefa, continuaria dando-lhes de comer da minha própria carne.
Se eu fosse uma mulher de Almodóvar visitaria no cárcere cada um dos meus algozes, dos benignos aos malignos. Se me pedissem dinheiro ou cigarro eu não lhes daria, mas se me pedissem perdão e afeto, eu lhes entregaria minha cabeça e coração num prato.

Após um dia todo de trabalho, os pés cansados e a mente aos suspiros, eu dançaria uma hora de sevilhanas para deleitar a platéia de um único sincero pagante... caso eu fosse uma mulher de Almodóvar.

Estar em carne viva é fácil. Bastam um corte e um furacão de dentro para fora para que os tecidos do corpo se desdobrem, se expandam e fiquem expostos sem pele. Difícil mesmo é extrair poesia de cada fibra solta, como fazem aquelas tais figuras femininas.

Mesmo distante de conhecer a fundo o diretor espanhol e suas mulheres, uma coisa posso dizer sem equívoco: se fosse uma mulher de Almodóvar eu falaria espanhol, me apaixonaria por alguém que caminhasse pela rua e lhe daria na hora as virtudes que eu tivesse, poesia e um café para celebrar; receberia um sinal recíproco a princípio e, dois minutos depois, um sinal de engano - porque Almodóvar não fantasia. Então ficariam as virtudes, a poesia e o café assim esparsos pelo chão, sem copo ou corpo que os contivessem. 

Depois disso, por ser uma mulher de Almodóvar, eu então chegaria em casa, acenderia um cigarro e escreveria uma crônica que terminaria assim:

No suelo perder nada de lo que me regalan con veracidad, aunque me lo regalen con fecha ya cierta para quitármelo de la mano. Lo que me regalan yo lo cojo, lo guardo y lo quiero todo lo que puedo antes de que se me vaya. Aunque suene ilógico ese querer, el se explica: más que la pena por el regalo que no tengo me habla más fuerte el hecho de saber que, cuando lo tuve, fue bueno y verdadero... por lo menos para mí. Soy la que sigue soñando con los imposibles.¹

¹[Não costumo perder nada daquilo que me dão com veracidade, ainda que o que receba tenha data certa para ser-me tirado das mãos. O que me dão eu acolho, guardo e amo o máximo que posso antes que se me escape. Ainda que soe ilógico esse querer, ele se explica: mais do que a pena por aquilo que não tenho, me fala mais alto o fato de que, quando tive algo, foi bom e verdadeiro... ao menos para mim. Sou a que continua sonhando com os impossíveis.]

*Colunista do Site Jungle Drums

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